Versos que gostaria de ter escrito

Meu desejo de apropriação da poesia alheia acendeu mais forte quando meu pai, um frasista de primeira, destoou da típica banalidade das mensagens de WhatsApp

Nome do autor
Bernardo Kircove
Publicado em
4 min de leitura
0

Todos já estivemos nesta situação. Você está lendo um livro, ou um artigo que seja, mesmo um blog como este que vos fala, e se depara com uma passagem tão profunda que precisa tomar fôlego. Lê novamente, aprecia, pensa: "cacetada, eu queria ter escrito isso”.


Eu gosto de anotar tais passagens, mas me falta disciplina. Muitas vezes não o faço. Isso me gera frustração constante, como se eu deixasse algum pedaço imperdível de literatura se esvair no meu inconsciente. Algumas vezes, porém, faço questão. Em outras, não há necessidade, pois é algo tão significativo que marca minha memória tanto quanto a cena do Scar atirando Mufasa do penhasco em "O Rei Leão".


Kundera escreveu, e gostaria de ter sido eu a tê-lo feito:


"No começo do Gênese, está escrito que Deus criou o homem para que ele reine sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo."


Isso foi em "A insustentável leveza do ser". Por algum motivo, os dizeres sobre Deus me pegam de jeito. Digo isso porque Saramago também reside no meu bloco de notas, em "O Evangelho segundo Jesus Cristo":


"(…) que José nem vergonha chegou a sentir, esse sentimento que é, quantas vezes, porém não as suficientes, nosso mais eficaz anjo-da-guarda."


Esta frase é incrível, e gostaria de tê-la escrito, mas talvez não tanto quanto a passagem que inaugurou em mim a inveja literária, encontrada em "A Revolução dos Bichos" (ou "A Fazenda dos Animais"), de George Orwell:


"Benjamin era o animal mais idoso da fazenda, e o mais moderado. Raras vezes falava e, normalmente, quando o fazia, era para emitir uma observação cínica – para dizer, por exemplo, que Deus lhe dera uma cauda para espantar as moscas e que, no entanto, seria mais do seu agrado não ter nem a cauda nem as moscas."


Nem a cauda nem as moscas! Um deleite para quem lê. Importante notar que esta não é uma prática exclusiva da ficção, o que se torna evidente com este trecho do discurso "O que é o Quatro de Julho para o Negro?", de Frederick Douglass:


"Temos de tratar o passado só até onde podemos faze-lo útil ao presente e ao futuro."


É gostoso nutrir este apreço e considero uma forma de homenagem. Uma homenagem um tanto egoísta, é verdade, mas ainda assim. Caso você que me lê ainda não tenha se conectado à inveja literária, imagine o quão legal seria se você tivesse escrito o clássico dos clássicos:


"Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure"


Que seja infinito enquanto dure! Tão certeiro que virou clichê dos mais cafonas.
 Imagine só a cara dos seus amigos se fosse você, e não Vinicius, a soltar esta pérola em meio ao bar cotidiano de sexta-feira.

Justiça seja feita: não apenas a literatura nos presenteia com esses momentos. Tive a felicidade de sentir da mais profunda inveja de B-Negão, ao ouvir "Enxugando Gelo":


"Apego pelo tempo, melhor não tê-lo / segurá-lo, não quero, nem há como contê-lo"


Nem rapper sou e queria muito ter escrito, tal qual este outro, desta vez um samba. Almir Guineto:


"Deixa desaguar tempestade / Inundar a cidade / Porque arde um sol dentro de nós / Queixas, sabes bem que não temos / E seremos serenos / Sentiremos prazer no tom da nossa voz"


A esta altura, você pode pensar que isso é besteira da minha parte. Devemos apreciar arte e, para os que convém, buscar uma voz própria. Referências sempre existirão, mas são apenas o que são: referências. Não deveriam despertar cobiça ao verso alheio, como é o caso de tudo que compartilhei até aqui. Imagine só, no entanto, a minha felicidade quando este sentimento me abateu não lendo um livro, ou escutando uma música, mas dentro de casa. Dentre todos os exemplos, meu desejo de apropriação da poesia alheia acendeu mais forte quando meu pai, um frasista de primeira, destoou da típica banalidade das mensagens de WhatsApp e enviou:


"Cuidem-se, e sejam felizes. Cada ciclo tem seu tempo. Curto, eu diria, mas o suficiente para todos os sorrisos e abraços que precisamos."


Estes versos me encheram de esperança. Se meu pai os escreveu, quem sabe eu também não possa? Ele não é nenhum Kundera, ou Saramago, e em sua sala não há nenhum Prêmio Nobel pendurado. Pensando bem, embora verdade, daqui nasce meu problema – é fato que ele não é Kundera, mas eu tampouco sou meu pai.

 

Contribua com o trabalho do autor

Gostou do que leu? Apoie o ao autor fazendo uma contribuição via PIX!
Ao contribuir você também poderá comentar neste artigo.

Selecione o valor:

R$ 0,50
R$ 1,00
R$ 5,00
R$ 10,00

Comentários (0)

Gostou deste artigo? Inscreva-se na minha newsletter para receber novidades.

Subscribe