O gênero do copo

Para o Tio Copo Americano, a discussão pouco importa, o que é de se esperar de quem recebe café, cerveja e cachaça com o mesmo entusiasmo.

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Bernardo Kircove
Publicado em
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Morei por alguns meses nos Estados Unidos, em uma cidade simpática chamada Mountain View, que é uma das que compõem a bay area, na California. Trata-se dos arredores de San Francisco, também conhecido por seu apelido mais famoso: o Vale do Silício. Isso mesmo, aquele das grandes empresas de tecnologia. Além de Mountain View, que abriga o Google, ainda há Cupertino, sede da Apple; Menlo Park, casa de Zuckerberg; e a própria San Francisco, lar do Twitter. Estes e outros mastodontes corporativos dividem aquele lado do céu californiano com outras milhares de empresas tecnológicas de todo o tipo, tamanho e propósito.


Você deve imaginar, portanto, que foram os ventos da TI que me levaram para lá, no ano de 2015. Mais precisamente em um escritório localizado numa rua cheia de restaurantes chamada Castro St, cuja homenagem não posso afirmar se diz respeito à Fidel, Raul ou, o que é mais provável, algum outro Castro ilustre daquelas terras.


Neste escritório vivi dias de trabalho e empolgação, e lá eu estava rodeado de pessoas de todo o canto do mundo. Na minha frente, sentavam americanos. De um lado, estonianos, do outro, holandeses. Atrás de mim, um casal: ele, britânico de primeira geração e família cingalesa; ela, sueca-finlandesa. Ainda havia argentinos, indonésios, tailandeses, sul-coreanos, franceses, chineses e um outro brasileiro radicado nos EUA desde os oito anos. O dia-a-dia é muito interessante enfiado numa salada cultural de 200m2.


O que eu mais apreciava eram as pequenices linguísticas; os detalhes da convivência multi-idiomática, normalizada através do inglês, que às vezes era fluente, às vezes nem tanto, às vezes apenas o suficiente para jogar ping pong. Certo dia, uma professora especializada em sotaques, fluente em cinco línguas, nos deu uma palestra. Ela era capaz de apontar quais as palavras cada nacionalidade não consegue falar direito.Uma zombaria, um flerte com o escracho por parte dela, mas algo muito legal de se participar.


— Ei, Brasil.


Eu era o Brasil, visto que o outro brasileiro, conforme mencionado, era radicado nos EUA desde a infância e assitir uma palestra com dicas de Inglês para estrangeiros era perda de tempo.


— Oi


— Fala thinked.


— fin-que-di


— Viu, haha, brasileiros não conseguem falar o -th e nem o -ed.


Era incrível! Ela fez isso com todos os gringos desavisados da sala. Para efeitos de esclarecimento, o -th necessita de uma liguinha entre os dentes, e o -ed exige que se engula o E, quase como um soluço no meio da palavra. Fato é: essas estripulias com a boca são de imensa dificuldade para nós, brasileiros.


No entanto, existia uma conversa recorrente ainda mais prazerosa que os sotaques carregados: o gênero das coisas. Esta se dava entre os que falavam as línguas latinas, e os que tinham inglês como língua mãe. Talvez você saiba, talvez não, mas para o Inglês (o idioma e o indivíduo), a porta não é A porta, assim como o martelo não é O martelo. Para os objetos não se usam pronomes masculinos ou femininos, e o próprio conceito de que a porta seja umA porta, portanto mulher no universo linguístico, deixa o norte-americano atordoado.


Para nós, pouco se pensa, pois aprendemos desde cedo que a mesa é A mesa, logo, mulher. O corredor, seja longo ou estreito, é O corredor, logo, homem. Para deleite ou indignação dos saxões, esta conversa poderia durar horas.


— E isso?

— Isso chama copo, O copo. É homem.


— Impossível, há de ser mulher!


— Não, o copo é homem, sempre foi.


Por essas memórias tenho muito carinho, mas elas também me intrigam. A discussão está viva, o ano é 2021, poderia o copo ressignificar-se? Afinal, não é o gênero uma construção social? Como poderia o copo, entre os seus, protagonizar sua luta?


Antes, é importante ressaltar que esta é uma família vasta. Há homens, como os copos, e mulheres, como as taças. Além disso, não faltam variações destes recipientes. No almoço de família, haveria de ser o Copo Retrátil, aquele que se usa na praia para evitar descartáveis e está na moda entre os ambientalistas, a iniciar a discussão. O Copo Retrátil é um jovem adulto, antenado, e a fluidez de gênero é algo com que ele se identifica — no caso, elx, ou elu, se identifica. Quem foi que enquadrou os copos em tamanha restrição pronominal? O tópico é quente.


Para o Tio Copo Americano, a discussão pouco importa, o que é de se esperar de quem recebe café, cerveja e cachaça com o mesmo entusiasmo. Já a Canecona de Chopada, prima e fã de sertanejo, acha isso uma palhaçada, pois o primeiro copo foi Adão, e a primeira taça foi Eva, e nada de fluido existe nessa história.


A Tia Taça de Vinho, terrivelmente conservadora, com detalhes em sua lateral e uma bolota de vidro no pé, engrossa o coro da Canecona de Chopada: essa discussão é um absurdo, e o pior, estão ensinando esta baboseira nas escolas.


Os sobrinhos, Copinhos de Shot, tentam explicar que o mundo mudou, é preciso ter respeito, e na escola deles nunca se falou sobre gênero fluido — apesar da diretora, uma garrafa térmica moderna, ter introduzido aulas de educação sexual.


Tia Taça de Martini, já um pouco embriagada, defende que está tudo bem, é coisa da juventude repensar as coisas, e na época dela tudo era muito liberal, tendo ela mesma se relacionado tanto com xícaras delicadas quanto com os copões de uísque bem machos da Tijuca. Enquanto Tia Taça de Martini falava, primo Copo de Requeijão deixou o recinto, esbravejando que não aguenta mais discussão política e que o mundo está muito polarizado.


A matriarca Jarra e o patriarca Bule apenas observam. Sabem que essas discussões vão e vem na família, como daquela vez que a Tulipa de Chopp, neta mais nova, namorou o Copo de Barro, colega da faculdade de ciências sociais e filho da Dona Moringa.

 

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